’Seus amigos e vizinhos’ é um reboot não reboot de ‘Mad Men?’
Quatro pontos de comparação entre as duas séries de Don Draper. Opa, Jon Hamm
Alguém por aí se lembra da abertura de Mad Men? Ela mostrava a silhueta de um típico engravatado cis-hétero-possivelmente-Wasp a despencar em queda-livre de um arranha-céu lenta e ininterruptamente, sem nunca tocar o chão, ao som do elegante tema de abertura ‘A beautiful mine’. Decerto uma bela alegoria ao esplendor da vida baby-boomer, antes que o primeiro olhar de suspeita se lançasse sobre o cigarro, sobre Nixon e sobre o preço que se paga pra manter a hipoteca em dia. Tempos das promessas de plenitude que antecederam as ilusões perdidas. E da constatação de que o paraíso nunca fora tão celestial assim, mas sustentado por mãos insatisfeitas balançando o berço.
Nesse contexto, o mulherengo Don Draper - personagem interpretado por Jon Hamm com o carisma irritantemente blasé dos que as sabem atraentes - seria o epítome do macho-alfa dos anos 1960, não fosse um pequeno detalhe: seu verdadeiro nome é Dick Whitman, um homem atormentado por ter roubado a identidade de um ex-companheiro de trincheira morto em combate (o verdadeiro Don), cuja trajetória serve de cartão de visitas para que o pobretão Dick possa acessar o universo da publicidade nova-iorquina, tão poderosa quanto necessária para criar novos sonhos de consumo em abundância.
Corta pra 2025: Don Draper - opa, Jon Hamm - volta a interpretar um homem atormentado pela masculinidade frágil na série ‘Seu vizinhos e amigos’ (Apple). Tudo considerado, juro que não comecei a assistir à série nova com Mad Men na cabeça. Até porque o trailer é construído para jogar a coisa pro lado do suspense. Mas foi só apertar o play do episódio 1, pra que a associação de ideias começasse a comer solta:
Seria o nome do protagonista da nova série (Andrew ‘Coop’ Cooper) uma alusão ao tiozão e sócio-sênior da agência de publicidade de Mad Man, a Sterling-Cooper? Acho difícil que ninguém tenha notado a coincidência. Pra mim, soou como uma piscadela pros fãs de Mad Men, indicando que o tiozão agora é o Don Draper;
Assim como Don Draper, Coop enfrenta uma crise no casamento. A diferença crucial é que, no lugar da infeliz dona de casa Betty Draper, temos agora Mel Cooper, que é pega traindo Coop com um amigo dele, se divorciam, mas quem fica com todos os bens é ela. Betty também traía Don, mas cheia de remordimentos por estar em busca de um romance ideal. Mel Cooper, por outro lado, é prática, descomplicada, confiante, um reflexo do seu tempo, enquanto a melancólica Betty passou boa parte das sete temporadas encastelada em seus ciclos de fuga, frivolidade e autocomiseração.
A agência de publicidade Sterling-Cooper de ‘Mad Men’ parece encontrar seu paralelo no Hedge Fund de ‘Seus amigos e vizinhos’. Também ela foi batizada com dois sobrenomes separados apenas por um hífen, nomes esses que agora não me ocorrem. Dois nomes esquecíveis, triviais, pouco sonoros, para deixar bem claro que o que importa agora não são os nomes, nem as identidades, mas a força do capital que ergue e destrói coisas belas. Sai a palavra e a arte dos criativos que reinavam na publicidade, entram os números, o dinheiro e o vício prestando homenagem à virtude, como na cena em que Coop é mandado embora por suposto assédio sexual, embora tenha transado de forma totalmente consensual com uma colega sem qualquer vínculo de subordinação. Tudo não passa de uma manobra pra espoliar Coop da empresa sem direito a um tostão. Fica evidente que enquanto em ‘Mad Men’, as mulheres não conseguiam ultrapassar as funções mais subalternas da agência de publicidade, em ‘Seus amigos e vizinhos’ a pauta feminista é capturada pelo gestor do fundo a favor de seus próprios interesses, dando mais uma prova de que o capitalismo é mesmo onívoro, mudando só um pouquinho pra que tudo continue sempre igual.
Tanto os objetos de cena e a ambientação de ‘Mad Men’ como os de ‘Seus Amigos e vizinhos’ contribuem para o desenvolvimento do enredo e da caracterização dos padrões de consumo do período de cada série. Mas o caso é que há um abismo separando o modo de vida dos ricos dos anos 1960 e o dos mega milionários de 2025. O número de carros, adegas, relógios, joias e roupas de luxo e o próprio tamanho das casas toma proporções com as quais os mad men sessentinhas jamais ousariam sonhar, ainda que no auge de sua criatividade. Ser um milionário em 2025 é ter que ostentar e possuir sem limites. É precisar constantemente de uma fonte inesgotável de dinheiro. Daí porque, enquanto Don Draper roubava a identidade de um homem para reconstruir a sua própria identidade, Andrew Cooper parte para o furto de objetos de luxo quando perde o emprego no Hedge Fund. E a palavra emprego não entra aqui de modo desavisado. Emblemática é a cena em que o “dono” do fundo diz a Coop: “seu maior erro foi acreditar que você era dono disso tudo; se você não pode levar nada disso pra casa, é porque nada nunca foi seu.” No olho da rua e descapitalizado da noite pro dia, Coop se vê destituído da persona com que foi identificado durante anos, decidindo então roubar os objetos de luxo de seus vizinhos para fazer frente ao lugar que construiu como membro do mercado de capitais.
Sei que a série apenas começou, sendo ainda muito cedo pra concluir qualquer coisa, mas já sinto no ar um perfume de reboot sem ser reboot de Mad Men. Não é cópia, não é remake, não é um reboot genuíno, mas parece evidente que existe um diálogo entre as questões dos dois universos e a estruturação dos dois protagonistas. No mínimo, dá pra falar de intertextualidade ou interdramaticidade (e se essa palavra não existir, nem me contem!).
Não fosse assim, como explicar a última cena do primeiro episódio, quando Coop/Jon Hamm toma um drinque no cinema particular de uma mansão vizinha que ele está prestes a saquear, enquanto assiste à legendária cena de ‘Gilda’ em que Rita Hayworth canta “Put the blame on me”, isto é, bote a culpa em mim, a mulher inesquecível, inescapável, incontornável. Ou como dizem os franceses, cherchez la femme.
Tá certo que a ex-mulher está no cangote de Coop pra que ele a ajude a manter a mansão e que a filha dele - mesmo sendo uma jovenzinha de pele impecável - quer dinheiro até pra pagar o tratamento em um dermatologista caríssimo. Mas, no fundo no fundo, não há dúvidas de que as mulheres da família servem apenas de pretexto pra que Coop escute a voz da própria vaidade e corra atrás daquilo que a sustentou por anos a fio: dinheiro, muito dinheiro. E se nos anos 1960 ainda se acreditava nunca ter havido uma mulher como Gilda, dúvidas não há de que, em 2025, não se pode dar de barato que todo e qualquer distúrbio na vida de um homem é causado por um amor perdido. Aliás, suspeito que, hoje em dia, isso deve ter se tornado um comportamento em vias de extinção.
Portanto, uma vez que em 2025 é o dinheiro quem decide quem vive e quem morre, quem fica e quem vai, talvez seja a chegada a hora dos franceses, sempre tão vanguardistas, adaptarem o dito popular para: Cherchez l’argent. Procure o dinheiro.
Se até Don Draper já abriu os olhos e capitulou… só não vê quem não quer.